DESTRINCHANDO A COMIDA REGIONAL
O QUE É ESTIMAR?
De acordo com o dicionário Michaelis, estima é, além do “ato ou efeito de estimar, a dedicação ou sentimento de apreço em relação a algo ou alguém; afeição, afeto, carinho”. Quando adotamos esse sentimento para nós mesmos, ela se transforma em autoestima. E o que isso tem a ver com a comida regional cearense? Mais do que você imagina
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ma pergunta não-tão-inédita neste especial foi feita mais uma vez: o que é comida regional para você? Dessa vez, para Fellipe Nogueira, o criador e o idealizador do perfil Gordices Fortaleza (@gordicesfortaleza),
no Instagram. Criado no final de 2014, o Gordices conta atualmente com 83 mil seguidores e tem como objetivo compartilhar as experiências gastronômicas de Fellipe pela cidade de Fortaleza. Para ele, comida regional cearense “é aquela que representa a gastronomia do nosso estado”.
O influenciador também cita a quinta da caranguejada como marco da culinária de Fortaleza, assim como o caldo do Mercado São Sebastião e o cuscuz com manteiga da terra, por exemplo. No entanto, para Fellipe, consumir esses alimentos é um hábito que vem se perdendo ao longo dos anos. “A nova geração só quer saber de hambúrguer, de pizza, de rodízio… Não é algo que está sendo passado de geração em geração, infelizmente. Porque existe muita ‘modinha’, também. É o bar da moda, é a hamburgueria da moda. É o “da vez”, que também passa rápido, e se perde. É algo triste”, lamenta Fellipe.
De fato, ao longo dos anos, algumas tradições alimentares cearenses se perderam ou não foram valorizadas o suficiente, resultado de uma não-afirmação identitária. É o que explica a professora e socióloga Kadma Marques, do Observatório de Cultura Alimentar Cearense (Occa). Para ela, a autopromoção e a valorização das chamadas culturas alimentares aconteceu de forma mais expressiva em outros estados nordestinos, como a Bahia e o Pernambuco, mas não no Ceará. Por sua vez, os alimentos principais de nossa culinária não foram colocados em evidência, o que abriu espaço para várias interferências externas.
A chef cearense Bia Leitão, que foi uma das participantes da última edição do reality show Top Chef Brasil, é “amante de comida brasileira”. Em um país que considera continental, Bia ressalta a existência e a diversidade de gastronomias distintas pelo Brasil e acredita que a comida regional deve ser tratada como produto capaz de gerar empregos e fonte de renda. Segundo ela, estados como o Pará já exploram o potencial culinário para movimentação turística. Não à toa, Belém é uma Cidade Criativa da Gastronomia, título concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) a cidades que se destacam na inovação e no desenvolvimento sustentável.
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Já no Ceará, o reconhecimento quanto a especificidade da culinária é um pouco distinto. Como explica Bia, a gastronomia tradicional popular cearense nem sempre é o primeiro objeto do pensamento turístico, por exemplo. “Quando o turista vem pro Ceará, ele pensa em Jericoacoara. Ele pensa na praia, ele não pensa na comida”, destaca a chefe.
Para Bia Leitão, o cearense tem um problema de autoestima “muito lascado” e não gosta de nada que é velho, o que reflete na forma como percebe a culinária. “Ele [o cearense] derruba todos os seus casarões, reinventa todas as suas praças. Dá uma volta na Beira-Mar. Todos os prédios são muito parecidos. A Aldeota, é tudo muito igual, é porcelanato, é azulejo... Então, a gente gosta muito de esquecer o que a gente é. Eu acho que a gente gosta de ser Miami. Eu acho que a gente gosta de ser qualquer coisa, menos cearense. E isso influencia diretamente na autoestima da cozinha”, explica a chefe.
Um novo significado
Enquanto pesquisadora, Bia também acredita que a culinária cearense não tem que ser reconstruída o tempo inteiro para ser respeitada. Ela cita como exemplo o Peru, país que buscou na tradição o fortalecimento da sua história gastronômica. Assim, a chefe defende que os pratos tradicionais populares não precisam serem “mascarados” para se tornarem mais vendáveis, e sim, serem aceitos da forma como foram pensados para ser.
A panelada pode ser o que ela é, a moqueca pode ser o que ela é. Eu não acho que a gastronomia brasileira precise passar por isso. [Pode] fazer isso uma vez ou outra de curtição, para brincar com a criatividade. [Muitas vezes] as pessoas tentam pasteurizar. Elas tentam colocar aquilo de forma que vire um produto de melhor aceitação, em vez de trabalhar uma educação inversa, de dizer 'esse produto precisa ser aceito da forma que ele é' porque ele é assim que a gente criou, assim que a influência de povos indígenas, portugueses, árabes, negros, geraram isso. Isso não é pobre, isso não é pouco, sabe?
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O cenário ao que Bia se refere está associado à concepção da cozinha regional cearense como sinônimo de uma comida de pobre. O termo, usado muitas vezes para caracterizar uma culinária que, em sua história, utilizou-se do aproveitamento e da economia de recursos para lidar com a escassez, traz uma conotação pejorativa. Mas um caminho possível para a ressignificação desse termo é o processo de aceitação da história do povo cearense. “Se você entender que isso faz parte da nossa memória e que a gente é assim, que a gente é árido e seco e, ao mesmo tempo, sobrevivente, e que uma série de coisas tem a ver com toda uma trajetória sertaneja, aí talvez a gente comece a entender que a nossa autoestima está ligada a tudo. Inclusive ao que a gente come, inclusive ao que a gente não come”, explica a chefe.
Um dos motivos de Bia Leitão ter aceitado participar do reality gastronômico Top Chef foi poder ocupar um espaço principalmente mascu-
lino: "Eu topei por poder ser um lugar de fala de mulher nordestina, mãe, solteira e cearense." | Fotos: Arquivo pessoal
Nas salas de aula
Tanto em relação a outros estados do país, quanto em relação a outros países. Para a socióloga Kadma Marques, a gastronomia brasileira está em processo de afirmação. “O Brasil, diferente de um país como a França, que já tem anos e anos de aposta na sua cultura alimentar e na projeção de pessoas que representam o País fora do país, está se configurando mais firmemente nesse momento. E se é assim para o país, no Ceará não vai ser diferente”, ressalta.
Por isso, tradições gastronômicas como a francesa exercem bastante influência nas culturas alimentares de outros locais pelo mundo, inclusive nos processos de ensino e de formação de profissionais, como explica Roberto Araújo. Assim, a gastronomia como campo de estudo no Ceará, por exemplo, demora a se consolidar. Reflexo disso é o fato de a primeira escola de gastronomia cearense ter sido fundada há cerca de uma década, com forte teor de valorização das cozinhas estrangeiras.
Isso porque, a fim de serem reconhecidas como universidade pelo Ministério da Educação (MEC), as instituições devem ter mestres e doutores no corpo docente. Claro, estudiosos cearenses formados em algo parecido com a culinária do Ceará não existiam, e portanto eram contratados professores estrangeiros ou do eixo Rio-São Paulo. A prova do "desespero" em montar grade curricular capaz de atender os requisitos do MEC são as matérias de língua francesa em diversas universidades de gastronomia no Ceará.