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A TRADIÇÃO COMO GUIA

A comida regional vai sendo formada por gerações. Algumas técnicas podem mudar de geração para geração, mas o regional coletivo continua ali. Como valorizar economicamente a cultura alimentar sem desvalorizar sua essência?

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á vai da geração da minha tataravó. Da minha bisavó, pra minha vó, pro meu pai, pra gente”, conta Ana Flávia Marques, de 31 anos. Na tapiocaria Eliane, localizada no Centro das Tapioqueiras e do Artesanato de

Messejana, Ana Flávia é mais do que uma funcionária: é família. Desde os nove anos de idade sabe cozinhar, e desde “sempre” trabalha no negócio. Seja como atendente, seja como cozinheira, a história de Ana Flávia está entrelaçada à um elemento típico de nossa culinária: a tapioca

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Ana Flávia Marques, 31 anos, integra uma família responsável por preparar uma ótima tapioca de carne do sol com requeijão 

De acordo com a cozinheira, o recheio das tapiocas mais pedido pelos clientes é a carne do sol. “Com queijo, queijo e requeijão, ou queijo e ovo, ou queijo e bacon, mas a carne do sol sempre presente. Se não tiver carne do sol, fecha as tapioqueiras e vai simbora, porque não vem ninguém”, ressalta Ana Flávia. 

 

Na tapiocaria Eliane também são comercializados pratos típicos da culinária cearense, como panelada, carneiro e galinha caipira. A preparação e a apresentação desses pratos possui uma especificidade: eles vêm separados em porções, cada uma em uma panela pequena de barro. Geralmente, são servidos cuscuz (um dos carros-chefes da casa), arroz, pirão e o “prato” principal. Quando perguntada em relação ao diferencial no servir, Ana Flávia responde: “Às vezes, quando é chefe de cozinha, já faz assim um prato mais enfeitadinho. Aqui não, o pessoal já quer daquele jeito, as coisas separadinhas. Eles querem é comer”. 

Na infância, a comida regional que Ana Flávia mais consumia era a galinha caipira, preparada pela bisavó. “Ela criava. Às vezes ela dizia assim: “vamo prender aquela galinha aqui que vamo matar ela no final de semana”. E foi um costume, já”, relata a cozinheira. Nesse sentido, a história de Ana Flávia se conecta com a de outros cearenses ao longo dos séculos. Segundo o historiador e gastrônomo Roberto Araújo, a cozinha cearense é marcadamente sertaneja. Nesse contexto, a criação despontou como alternativa para superar questões socioeconômicas que dificultavam o acesso aos alimentos, especialmente a carne bovina.

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+ Leia mais: Entrevista com Roberto Araújo

 

“O elemento pobre não tem os mesmos recursos que o elemento rico, mas vai encontrar o quintal de casa como alternativa para plantar a verdura, criar animais. O sertanejo fala muito de “carne de criação”, que é aquele animal que eu podia criar no meu quintal, um porco, um carneiro, um bode, uma ovelha, as galinhas, os patos, os perus, os capotes. Esses alimentos não vão estar todo dia na mesa, mas em uma festa, celebração ou momento especial, o pobre vai poder lançar mão disso”, explica o especialista.

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De acordo com Roberto, a busca de um aproveitamento total dos alimentos é outra consequência de um cenário no qual não podia se dar o luxo de desperdiçar nada. “O que é uma buchada, uma panelada, um sarrabulho, um sarapatel, se não o aproveitamento das vísceras, dos miúdos, dos animais? Talvez daí venham expressões também que ainda hoje, volta e meia, você escuta, como ‘do boi só se perde o berro’, porque isso não dava para aproveitar”, ressalta o historiador. 

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No Ceará, a escassez de recursos resultou, ainda, na adaptação das técnicas de preparo dos alimentos. No que o gastrônomo chama de cozinha de tradição, o material de combustão também tinha que ser economizado. “Então o que se faz? Se desenvolve uma culinária em torno de uma única panela, de um único fogo, que é uma característica muito forte de nossa cozinha regional. O que é o baião de dois se não a preparação de panela única?”, completa.

Ressignificação

Chamada por alguns de “comida de pobre”, a comida regional cearense nem sempre foi percebida como importante. Para a professora e socióloga Kadma Marques, é a comida que a gente esconde, não mostra para os turistas. “Mostramos o que tá no litoral e é mais palatável e corresponde a um imaginário que foi inclusive fortalecido, criado, pela indústria do turismo”, ressalta a professora. “Mas o Ceará tem mais do que isso, tem mais do que a culinária que é feita no litoral. Boa parte da culinária vem do sertão e vem das serras”, completa Kadma. 

 

Apesar disso, movimentos de busca pela valorização da cozinha regional do Ceará vem se fortalecendo, a partir de iniciativas que acreditam na originalidade como um dos caminhos para a redefinição desses conceitos. A consultora de Gastronomia do Serviço Nacional de Aprendizado Comercial do do Ceará (Senac/CE) Vanessa Santos considera o uso da criatividade de chefs de cozinha como atrativo para a comida regional, sempre utilizando o tradicional como guia. 

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Dessa forma, tanto os estigmas dos próprios cearenses podem ser revertidos, quanto a atenção do turismo para uma experiência culinária diferenciada pode ser atraída. Ainda, a especialista entende que a eleição de Fortaleza como Cidade Criativa do Design, título concedido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), é oportunidade de trazer a cultura alimentar cearense para a discussão governamental.

 

Mas por quê não cidade criativa da Gastronomia, como Belém (PA)? De acordo com Vanessa, a gastronomia entra no conceito de economia criativa, intrinsecamente relacionada ao design. “Se você está falando de cultura, a gastronomia está dentro desse setor. Ou você vive sem comer?”, analisa. Por essa perspectiva, a comida está ainda mais relacionada ao desenvolvimento regional cearense.

 

Esse também é o caso de Léo Gonçalves, chef de cozinha e um dos idealizadores do movimento de Denominação de Origem Cearense (DOC) que propõe inovar na culinária cearense, mas sem esquecer das suas raízes formadoras. “Comecei a pensar numa cozinha cearense mais moderna, que olhasse para o tradicional como base de pesquisa, de sabores e técnicas, mas que pudesse evoluir e ressignificar perante a sociedade cearense e o mundo. E mostrar que a gente tem comida com conceito, comida bacana, social e cultural”, explica o chef. 

 

Confira a seguir a entrevista completa com o chef Léo Gonçalves.

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