DESTRINCHANDO A COMIDA REGIONAL
Discutir comida não é só falar de gastronomia. A partir do alimento, é possível refletir sobre temas como identidade regional e autovalorização
humana. Entretanto, pesquisadores têm apontado cada vez mais a necessidade de se refletir sobre a construção identitária da comida, já que os rituais humanos em volta desse hábito ultrapassam a necessidade nutricional e ainda reforçam laços sociais.
É o que explica a doutora em Sociologia e coordenadora do Observatório Cearense da Cultura Alimentar (Occa), Kadma Marques Rodrigues. De acordo com a especialista, a comida regional é o resultado da união entre hábitos alimentares definidos pelos ingredientes da região e pela cultura da comunidade. Por isso, definir comida regional também perpassa técnicas de preparo e utensílios utilizados. Dessa forma, por exemplo, o baião de dois feito no Norte e o feito no Nordeste pode ser o mesmo prato, mas os ingredientes e a forma de preparo o ressignificam como regional ou não.
O restaurante Maria Chica, próximo à Universidade Estadual do Ceará (Uece) campus Itaperi, é citado pela socióloga como empreendimento que investe no regional tradicional. Kadma descreve que o visual do local é composto de forma a contemplar a identidade cearense a partir das casas do interior. Decorado com potes de barro, pilões de madeira e utensílios de cozinha pendurados, o Maria Chica remete ao regional que acompanha a alimentação.
P
or muito tempo, as percepções médicas e econômicas relacionadas ao hábito de comer foram priorizadas em detrimento das reflexões sociais e antropológicas envolvendo o tema da alimentação
DESTRINCHANDO A COMIDA REGIONAL
O que é a comida regional?
A comida regional é aquela que se come em determinada região. A princípio, ela é constituída pelos alimentos disponíveis em uma área geográfica específica. A maioria dos estados brasileiros estão delimitados em territórios geográficos com apenas um tipo de clima. Mas o Ceará teve a sorte de ser composto por três microclimas diferentes. Por essa variedade climática, a cozinha cearense goza de insumos diferenciados dentro do próprio estado.
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Clique nas imagens abaixo e entenda cada microclima cearense:
Sertão
Litoral
Serra
A comida regional vai ganhando complexidade quando adicionado o caráter mais humano da coisa, a criatividade. Por meio da arte de criar conscientemente, os seres humanos transformaram o comer em uma cultura alimentar. Cultura é definido como tudo aquilo produzido pelo ser humano em sociedade. No campo alimentar, ela diferencia quais os valores das comunidades no processo de consumo e com quais elementos elas se identificam e funcionam como afirmação de memória e identidade.
“A alimentação, as formas de produção, de circulação, de partilha, de consumo e de comercialização são próprias de cada agrupamento humano. Elas vão caracterizar o leque de possibilidades de alimentação, e também o cardápio que cada sociedade monta, distinguindo o que se come e o que jamais se comeria. Tudo isso caracteriza a cultura alimentar de um determinado povo”, diz Kadma.
Essa cultura alimentar vira herança. É ensinada entre as famílias, geralmente de avó para mãe, e mãe para filha, perpetuando as técnicas de se preparar os alimentos e em quais momentos eles devem ser consumidos. A partir disso, algumas pessoas começam a determinar valores e procedimentos para as preparações, profissionalizando a culinária. Assim surge o ramo gastronômico, que se torna um “campo específico, constituído por hierarquias e agentes específicos, com formas próprias de valorização e celebração”, diferencia a coordenadora do Occa.
E o que é comida regional cearense?
A comida regional, porém, não está limitada aos insumos de espaço geográfico específico. Os processos de industrialização e globalização facilitaram os movimentos migratórios, incluindo os de comidas. É o que o sociólogo Jean-Pierre Poulain, autor do livro Comida, culturas e saúde, chama de desterritorialização dos alimentos. Dessa forma, as populações deixam de estar submetidas à alimentação da natureza.
Por isso, seria difícil dizer que uma comida regional é cearense porque só se encontra no Ceará. Muitos estados nordestinos, inclusive, compartilham de bases alimentares parecidas, mas é a forma que eles se apropriam das comidas que define o regional e o não-regional. “A comida regional é aquilo também que a gente se apropria, aquilo que a gente consegue converter entre nós, e que pela presença permanente vai ganhando uma feição cearense”, analisa Kadma.
A tapioca é um ótimo exemplo. Enquanto ela está presente em todo território nacional, ela é considerada pelos cearenses como algo próprio. Isso porque a tapioca constitui a dieta cearense, é servida em restaurantes formais e informais e torna-se elemento marcante da culinária regional. Ela vira realidade da cultura alimentar do Ceará.
Ainda, fatores socioeconômicos definidos pela história de formação do Estado constituem a comida regional, influenciados pela disponibilidade ou valor simbólico de cada produto em cada época. O historiador e gastrônomo Roberto Araújo, também integrante do Occa, explica que a colonização do Ceará foi diferente da de outros estados nordestinos. Enquanto o resto do Nordeste foi colonizado do litoral para o interior, no estado cearense a direção foi contrária. A partir disso, a culinária cearense ficou caracterizada por quatro pontos principais: ela é uma comida sertaneja, com extremos de sal e açúcar, de textura seca e muito marcada pelo aproveitamento.
Compreenda a relação desses atributos com a história social, cultural e econômica do Ceará a partir da entrevista completa com Roberto Araújo:
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